Consultório Financeiro

“Em que situações cabe uma ação de usucapião?”

“Minha sogra herdou 1/4 de um apartamento há três anos, juntamente com seus três irmãos. Nenhum dos irmãos jamais pagou qualquer despesa de manutenção do imóvel, impostos ou o que seja. Além disso, eles não têm recursos para (nem vontade de) regularizar a documentação. Disseram-me que se minha sogra continuar a comprovar que arca com todas as despesas integralmente por pelo menos cinco anos, ela pode entrar com uma ação de usucapião e passar tudo para o nome dela rapidamente. É verdade?”

Carlos Rogério Thomé, CFP®, responde:

Direito de herança é, por si só, terreno de extensas discussões e interpretações jurídicas. Adicionando-se ao assunto o instituto da usucapião, tem-se os elementos que dificultam, nesta coluna, uma resposta conclusiva e definitiva à questão levantada pelo nosso leitor. Conforme informado, a documentação do imóvel pretendido precisa ser regularizada. Não está claro, no entanto, se a irregularidade refere-se a um processo de inventário incompleto (talvez pelo não pagamento do ITCMD) ou a obrigações surgidas após a expedição do Formal de Partilha, documento que encerra o processo de inventário e atribui a cada herdeiro sua parte nos bens comuns da herança.

Com o falecimento do autor da herança, a posse de um imóvel é transmitida a todos seus herdeiros através do processo de inventário. Sem o inventário a propositura da usucapião não se aplica, pois, conforme parágrafo único do Art. 1.791 do Código Civil, “até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio”. Porém, se o inventário tiver sido concluído e o Formal de Partilha expedido, pode-se discutir a usucapião.

As informações passadas ao nosso leitor foram baseadas, provavelmente, no artigo 1.240, do CC, que estabelece que, “aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Usucapião é uma forma de aquisição da propriedade que requer, para sua validação, dois elementos fundamentais: a posse e o tempo. Não é qualquer posse, porém, que propicia, com o decorrer do tempo, o reconhecimento da usucapião.

Em primeiro lugar, a posse precisa ser exercida com intenção de proprietário (arcar com as despesas do imóvel contribui para esta caracterização) e seu objeto (apartamento) deve servir de moradia de forma ininterrupta e incontestada à pessoa que pretende sua aquisição, durante todo o período necessário para a tipificação da usucapião.

Ainda, para ser justa, a posse não pode ser violenta nem clandestina, isto é, realizada às escondidas, sem ser percebida. A julgar por estas condições, seria razoável admitir a usucapião sugerida pelo leitor, mas há ainda outra característica que pode tornar uma posse injusta e inviabilizar essa usucapião: a precariedade.

A posse precária de um imóvel ocorre quando alguém que o recebeu por confiança, na expectativa de devolvê-lo, opta por retê-lo indevidamente quando o imóvel lhe for solicitado. O artigo 1.208 do CC diz que “não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Importante salientar que a caracterização da posse violenta ou clandestina cessa juntamente com os atos que a originaram, já a posse precária não cessa nunca.

Embora possa haver uma sentença favorável à usucapião pretendida, é mais fácil acreditar que o apartamento em questão terá a propriedade transferida para a sogra de nosso leitor por meio da negociação com os demais herdeiros.

Carlos Rogério Thomé é planejador financeiro pessoal e possui a certificação CFP (Certified Financial Planner), concedida pela Planejar – Associação Brasileira de Planejamento Financeiros. E-mail: [email protected]

As respostas refletem as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico ou da Planejar. O jornal e a Planejar não se responsabilizam pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso destas informações. Perguntas devem ser encaminhadas para: [email protected].

Texto publicado no jornal Valor Econômico em 23 de maio de 2016

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