Juros negativos, Darwin e iguanas no Brasil

Dizem que, quando Charles Darwin começou sua viagem ao mundo para estudar a evolução das espécies, suas primeiras observações não foram muito animadoras. Isso porque, por começar da Inglaterra, sua terra natal, os primeiros animais que viu eram os mesmos que sempre viu, nada de novo. Mas, quando chegou em Galápagos, na Oceania e no Brasil, ele viu espécies como lagartos, camaleões, tucanos, aves e peixes tão raros que pôde concluir: “Não é a mais forte das espécies que sobrevive, nem amais inteligente, mas aquela que mais se adapta às mudanças”.

Até o século XX, a oferta de moeda estava diretamente ligada à oferta de ouro e prata usados para cunhar moedas. Descobriam alguma reserva de ouro, cunhava-se muita moeda e a inflação subia. No ano seguinte, a economia crescia, precisavam de mais moeda, mas não havia reserva de ouro nova, e a deflação aparecia.

Verdade seja dita, vimos nessa recente história do capitalismo muitos períodos de inflação positiva e persistente. Era como Darwin ver um cavalo ou um cachorro. Mas deflação é um bicho novo e pouco visto, como um camaleão ou uma iguana. Pior, as ferramentas que um banco central tem à sua disposição (compulsório, redesconto, open market e tudo o que fomos testados no exame do CFP®) parecem funcionar muito mais para frear a atividade econômica (e a inflação, por consequência) do que para acelerá-la. Não conhecemos muito bem a anatomia desse novo bicho.

Mas, desde o início dos anos 2000, essa série de iguanas, cangurus e tucanos saiu da toca. A deflação e juros negativos, até então pouco vistos no mundo, viraram a regra para boa parte da Europa, até que, depois da pandemia, esses bichos chegaram por aqui também. E são venenosos.

“Não é a mais forte das espécies que sobrevive, nem a mais inteligente, mas aquela que mais se adapta às mudanças”

As preocupações com a deflação e com os juros negativos são as mais variadas. Pense em crédito privado. Imagine uma empresa que tem que pagar R$ 15 milhões por semestre como amortização de uma dívida. Se o país estiver em deflação, significa que os R$ 15 milhões agora valem muito mais do que antes. Logo, a dívida da empresa está muito maior doque estava (em termos reais) e ela vai ter mais dificuldade de repagar. Mais default, maior risco de crédito, maiores spreads… na deflação!

Pense em ações. Uma empresa faz geladeiras e programa sua produção para 200 mil geladeiras para daqui a um mês. E quando elas estiverem prontas, serão vendidas por 3 mil reais cada uma. Só que, quando estão prontas e é hora de vender, a geladeira vale… R$ 1.500. O prejuízo que acometer essa empresa produtora de geladeiras vai se traduzir no preço de suas ações, que entrarão em queda livre.

Pense em um banco. Um correntista vai depositar R$ 1.000 nesse banco para depois de um mês sacar… R$ 800. Correntistas vão sacar seus depósitos, andar com dinheiro vivo, deixar embaixo do colchão. Bancos sem depósitos significa menos crédito, menos funding, menos intermediação.

Pense em donos de imóveis que compraram um prédio na planta por R$ 300 mil e gostariam de vendê-lo por R$ 650 mil. Agora que o prédio está pronto, ele consegue vender o imóvel por… R$ 200 mil.

Pense em investidores que sempre pedem mais prêmio de risco para se expor a mais prazo. Agora, quanto mais prazo… menos prêmio!

Fato é que a deflação e os juros negativos fazem tão pouco sentido que temos que parar um pouco para raciocinar, pois contraria tudo o que sempre aprendemos sobre o funcionamento dos mercados. A inflação é ruim, mas é pró-cíclica porque acelera quando a economia está muito aquecida, freia quando a economia está mais morna.

Para nós, profissionais de investimentos, inflação era um mundo que sabíamos explicar. Era como Darwin explicara anatomia de um cachorro ou um cavalo. Se a inflação estivesse sob controle, ativos de liquidez mais curta (cash) rendiam uma taxa flutuante e iam bem. Ações deveriam ir bem porque preços subindo significam empresas dando mais lucro em termos nominais e isso faria as ações subirem. Imóveis deveriam ir bem, pois como seu valor intrínseco é real, palpável, mais inflação aumentaria os preços dos imóveis. Renda fixa é o único ativo que não iria tão bem. Afinal, a inflação aumentaria yields e derrubaria o preço unitário (PU) dos títulos. Inflação, desde que dentro de expectativas, fazia quase todo mundo feliz.

É urgente, realmente urgente, que os governos refaçam suas contas públicas, promovam reformas fiscais, para pararem de gastar.

Eis a vida real. Desde os anos 80, os governos usaram o mesmo remédio para estimular a economia. Não por acaso, paramos nossa análise em 2015, última vez em que os juros estiveram em patamar positivo. Depois disso, Bundesbank e Banco Central Europeu entraram no campo negativo, onde estamos até hoje. Estamos aprendendo a anatomia das iguanas e dos camaleões. Até a crise financeira global de 2007-2009, era geralmente aceito que bancos centrais não conseguiam implementar com sucesso políticas de taxas de juros negativas. Na crença em um “limite zero” nas taxas de juros, achava-seque os indivíduos prefeririam manter moeda em casa se tivessem que enfrentar o ganho de uma taxa de juros negativa.

E esse movimento em direção à retenção de moeda drenaria os depósitos e reservas do sistema bancário, fazendo com que os balanços dos bancos encolhessem. A contração do crédito resultante pressionaria para cima as taxas de juros, frustrando a tentativa do banco central de manter as taxas negativas. E essa contração do crédito, provavelmente, também colocaria pressão negativa adicional sobre o crescimento econômico, reforçando, assim, a necessidade de políticas estimulantes.

A medida não convencional chama-se Quantitative Easing (QE), em que os bancos centrais se comprometeram com compras contínuas em grande escala de títulos de renda fixa domésticos de alta qualidade. Essas compras foram financiadas pela criação de uma quantidade igualmente grande de reservas bancárias na forma de depósitos do banco central.

Se o QE foi ou não eficaz, ainda não há uma conclusão unânime. Mas fato é que o “limite inferior a zero” se provou sustentável. A migração para a moeda não ocorreu como esperado porque a escala e a velocidade das transações inerentes às economias modernas não podem ser suportadas usando dinheiro físico como o principal método de troca. 13 trilhões de dólares mudam de mãos diariamente para facilitar o comércio de bens, serviços e instrumentos financeiros, e essas transações não podem ser realizadas apenas com dinheiro físico. As reservas e depósitos bancários mantidos no banco central, em vez de dinheiro em caixa, têm um rendimento implícito que o dinheiro não tem. Enquanto esse valor exceder o custo explícito de manter esses depósitos – na forma de uma taxa de juros negativa – não há incentivo para converter os depósitos em dinheiro. Em tais circunstâncias, descobrimos e aprendemos que taxas de juros negativas podem ser alcançáveis ​​e sustentáveis.

Se colocarmos política fiscal na análise, tudo fica mais complexo. É urgente, realmente urgente, que os governos refaçam suas contas públicas, promovam reformas fiscais, para pararem de gastar. Déficit fiscal sem retomada de economia é continuar forçando juros artificialmente para baixo através de aumento da base monetária. É jogar juros ainda mais para o campo negativo. É deflação persistente. Só tem uma classe de ativos feliz com isso:  renda fixa pré-fixada de longo prazo. É a picada final da iguana.

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