A maldição do Rei Midas

O Planejamento Sucessório do século XXI vai muito além de estruturas societárias e otimização fiscal. Planejadores financeiros agora aplicam técnicas para que herdeiros recebam os valores e o legado dos fundadores.

Rei Midas era um bom homem, abençoado com abundância material. Tinha um palácio com muitos serviçais e jardins por onde adorava andar. Sua joia mais valiosa era sua filha. Seu sorriso era o que mais lhe trazia satisfação. Sua riqueza era composta de terras, de animais, mas principalmente de ouro. Midas amava ouro, a maneira como este brilhava e o barulho que fazia jogar moedas ao alto.

Um dia, seu caminho cruzou-se com o de Silênio, amigo do deus Dionísio. Silênio estava perdido na floresta. Midas o levou para sua casa e cuidou do homem por 11 dias. Quando Dionísio viu o gesto, ficou tão grato que lhe concedeu um desejo. Contra o desejo dos deuses, Midas desejou que tudo que tocasse se transformasse em ouro.

Longe de ser uma benção, seu desejo transformou-se em maldição. Sem saber o que fazer e em desespero, Midas pediu ao deus Dionísio que tirasse sua maldição. Dionísio lhe respondeu que ele deveria provar que aprendera sua lição. “Primeiro, lave suas mãos no rio. Depois, traga água do rio e jogue sobre tudo que se transformou em ouro. Depois, doe tudo o que tem”. Assim fez o Rei Midas. E terminou seus dias tendo doado toda a sua riqueza, em um casebre na floresta ao lado de sua filha, em felicidade plena.

Planejamento Sucessório hoje

Planejadores financeiros e advogados de fato fazem um ótimo trabalho em criação de holdings, FIPs, compra de seguros de vida, transferências intrageracionais (doações diretas a um neto, pulando o filho), usufruto, testamentos e outras estruturas criativas que têm o mesmo fim: transferir patrimônio de uma geração para outra com o mínimo impacto tributário possível, dentro dos limites da lei.

Mas será que isso basta? Bem, Perry Cochel e Rodney Zeeb(1), dois dos advogados mais respeitados do mundo em Planejamento Sucessório, nos mostram uma estatística alarmante: 90% dos planejamentos sucessórios falham. Isso mesmo: de cada 10 famílias afluentes, 9 estão falidas antes de chegar à terceira geração. Até Adam Smith, pai da Economia Moderna, nos prevenia que a “riqueza, mesmo com toda a regulação que previna sua dissipação, raramente permanece na mesma família”(2).

Planejadores financeiros sabem que dinheiro é apenas uma ferramenta para atingir aquilo que sempre perseguimos. Mas o que perseguimos? Se uma família não persegue nada, não tem valores, não tem um legado a perpetuar, dinheiro não é nada.

Precisamos, então, evoluir na maneira como executamos planejamento sucessório. Segundo Paul Schervish, do Boston College(3), até 2044 cerca de US$ 44 trilhões serão transferidos de uma geração a outra. Em 1950, esse volume era US$ 5 trilhões (em dólares de 1998). Até o ano 2000, eram US$ 40 trilhões. É um mundo em que a prosperidade financeira e a concentração de renda andam a passos galopantes. O capitalismo fez bem a todos. Nunca o mundo viu tantos ricos ao mesmo tempo. O trem anda rápido demais para que alguém tivesse tempo de parar e dizer “tem algo errado aqui”.

Se lermos biografias, veremos que estão repletas de afluentes que declaram publicamente que não foram felizes e que tanto dinheiro mais prejudicou do que ajudou. Um cliente que participou do processo de Planejamento Sucessório (e cuja identidade será preservada) construiu um negócio de comidas congeladas. Fornecia para praticamente todas as grandes redes de supermercado do país e acumulou em vida um patrimônio de aproximadamente R$ 150 milhões. Ele contratou bankers, contadores e advogados para planejar cuidadosamente sua sucessão. Ele se considerava honesto e seu único escorregão foi um divórcio aos 40 anos. Fora isso, criou três filhos com sua segunda esposa, ajudava sua igreja e fazia seu melhor para a família. O documento final, com mais de 400 páginas, validado por advogados, tributaristas e planejadores financeiros, decretava: deveria dividir seu patrimônio entre a segunda esposa, seus três filhos, seu irmão e um primo.

Planejadores financeiros sabem que dinheiro é apenas uma ferramenta para atingir aquilo que sempre perseguimos.

Até que, em uma terça-feira de manhã, aquele homem simplesmente não acordou. Às 8:15, os advogados começaram a ligar para os beneficiários e dizer que, uma vez passado o luto, eles estariam prontos para seguir com a transmissão dos bens. Não houve luto. Em menos de 24h após a morte daquele homem, seis processos foram abertos questionando aquele patrimônio. A primeira mulher, com quem ele não falava há 30 anos, queria algo. O filho mais velho queria tudo. O filho do meio queria mais. O marido da filha queria pausar seu processo de divórcio, convencido de que ele poderia ter um papel na administração da companhia de comidas congeladas.

A segunda esposa, seguindo a recomendação dos advogados, entrou com um processo dizendo que nem o irmão nem o primo “mereciam um centavo sequer”. Aquela família não se reuniu mais para um Natal. O trabalho tradicional e árduo de contadores, tributaristas e planejadores financeiros se acabou em 24 horas.

Planejamento Sucessório no Século XXI

Então, o que fazer? Qual o jeito certo de transmitir patrimônio? Os planejadores do século XXI agora separam o planejamento sucessório em herança financeira e herança emocional.

Com a herança financeira se lida ao inventariar o patrimônio, decidir quanto se deseja transmitir e para quem, e estruturar como fazê-lo com eficiência fiscal e com mínimo risco de questionamentos jurídicos futuros. Da herança emocional, por sua vez, se trata ao mapear quais são os valores-chave que fizeram daquela família tão rica, e qual legado se gostaria de transmitir para as próximas gerações.

A herança financeira trata de holdings, testamentos e doações. A herança emocional trata de trabalho voluntário, filantropia, honestidade e fé. Herança financeira se faz após a morte. Herança emocional se faz em vida, com uma extensa agenda de trabalho que envolve reuniões, apresentações e convívio com primos, genros, cunhados, irmãos. O planejador financeiro lida com todos esses aspectos. O que queremos é zelar para que o dinheiro seja usado para algo a que o herdeiro atribua significado. No fundo, é isso que todo afluente quer. Deixar um legado.

Pegue a famosa revista americana America’s most admired people. Por que eles são tão admirados? Por filantropia? Por dar suporte à educação básica? Por ajudar dependentes químicos? Por mostrar compaixão a refugiados de guerra? Não, apenas porque têm muito dinheiro. Na mente deslumbrada dos não afluentes, dinheiro é virtude, não uma ferramenta. Dinheiro apenas magnifica aquilo que somos. Então, a missão do planejador financeiro e da boa sucessão é fazer com que pessoas que têm muitos meios (o dinheiro) encontrem o melhor fim.

1. COCHELL, Perry L.; ZEEB, Rodney C. Beating the Midas Curse. GenUs, 2013.
2. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. 1. ed. Trad. Luiz João Baraúna, São Paulo: Abril Cultural, 1983.
3. SCHERVISH, Paul. New Report Predicts U.S. Wealth Transfer of $59 Trillion, with $6.3 Trillion in Charitable Bequests, from 2007-2061. Boston College. Center on Wealth and Philantropy, 2014.
Acesso em 24 mar. 2020.

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