Seus filhos já herdaram juntos? Cuidados no planejamento sucessório.

Natalia Zimmermann, CFP® ,TEP®. Presidente do Conselho de Normas Éticas da Planejar. Advogada com foco em Planejamento Sucessório / Wealth Planning e Tributário para pessoas físicas.

Objetivo

Pretende-se instigar o leitor a pensar sobre a sucessão de maneira mais ampla, incluindo não só as questões de planejamento financeiro, mas também os aspectos jurídicos relativos ao processo de sucessão. A intenção é que, ao final do artigo, o leitor seja capaz de identificar os principais aspectos jurídicos com os quais deverá se preocupar ao pensar em seu planejamento sucessório, principalmente quando os herdeiros do patrimônio serão os filhos.

“Família é um grupo de pessoas unidas pelo sangue e pelo amor, mas separadas por dinheiro.”

Aristóteles Onassis

E por que seria importante pensar em como desejamos transmitir nosso patrimônio aos descendentes, em especial aos filhos? Que cuidados devemos ter ao planejar a sucessão? A transmissão de patrimônio sem planejamento, ou sem considerar quais são os elementos que desejamos perpetuar, e sem analisar qual é a vocação, os desejos e interesses de nossos descendentes, pode levar a grandes desconfortos, “prejuízos” e frustrações. Essas situações podem, com frequência, culminar em infindáveis embates judiciais nos quais os herdeiros são os grandes perdedores.

Introdução e conceitos básicos

Possuir patrimônio, almejar sua perpetuação e transmissão, requer pensar com certo vagar em algumas variáveis, em especial naquelas usualmente negligenciadas.

A par das tradicionais variáveis – como tipo e localização dos ativos, necessidade de liquidez, diversificação, controle de risco, cenário econômico –, vamos nos focar em outras variáveis que são as questões jurídicas envolvidas no processo de perpetuação e transmissão de patrimônio. As questões jurídicas envolvidas no planejamento sucessório não podem ser abordadas unicamente sob a ótica do direito das sucessões. Tratar deste tema envolve não só questões de direito das sucessões, mas também regras de direito de família, tributário e societário (para ficarmos nos aspectos básicos). A questão é mais complexa do que aparenta. Preparar-nos e preparar as futuras gerações para a sucessão é uma escolha e, como toda escolha, nos obriga a buscar conhecimento, questionar, refletir, discutir, para enfim decidir.

Planejar a sucessão não implica “encomendar um caixão” e escrever nosso epitáfio; tratar da sucessão do patrimônio implica conhecer quais são as regras que se aplicam às diversas formas de transmissão de patrimônio, seja durante a vida ou ao final dela, e como podemos implementar nossos desejos.

Organização do artigo

Este artigo está dividido em quatro grandes blocos:

1. Regras Básicas de Direito de Família
Neste bloco iremos discutir quais são os regimes de bens aplicáveis aos casamentos e uniões estáveis, suas regras e efeitos na sucessão.

2. Regras Básicas de Direito das Sucessões e Doações
Neste bloco discutiremos os contratos de doação, forma de sucessão em vida, e regras gerais de sucessão causa mortis, tais como ordem de vocação hereditária, legítima, disponível e testamentos.

3. Noções da Tributação Incidente nas Transmissões Causa Mortis e Doações
Este bloco é dedicado a uma breve análise da incidência dos dois principais tributos envolvidos no processo sucessório: o Imposto de Renda e o Imposto de Doação e Herança – ITCMD.

4. Conclusões


Nesta edição da revista trataremos exclusivamente do primeiro bloco, Regras Básicas de Direito de Família; os demais serão publicados na próxima edição da CFP® Professional Magazine.

1. Regras básicas de Direito de Família

Ao analisarmos um caso de sucessão, é de fundamental importância que tenhamos domínio de algumas regras de Direito de Família, pois estas inevitavelmente irão influenciar o planejamento.

Para ilustrar esta situação, basta citarmos que o status de herdeiro necessário, ou não, do cônjuge sobrevivente, quando este concorre com descendentes do cônjuge falecido, varia em virtude do regime de bens do casamento. O casamento é um contrato entre duas pessoas e, como tal, no que tange aos bens de cada um dos cônjuges e aos bens comuns do casal, é regido por um conjunto de regras relativas ao regime de bens que o casal adotou ao se casar.

Se não houver um pacto antenupcial, ou se este for nulo ou ineficaz, o regime de bens será de comunhão parcial(1).

Código Civil (Lei nº 10.406, artigo 1.639)

O nosso Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) prevê em seu artigo 1.639 que, antes do casamento ser celebrado, os noivos podem escolher o regime de bens que desejam. Entretanto, se não houver um pacto antenupcial, ou se este for nulo ou ineficaz, o regime de bens será de comunhão parcial(1).

O mesmo se aplica às hipóteses de união estável, que se caracteriza pelo relacionamento entre duas pessoas(2) com intuito de constituir família, mas que não preencheram as formalidades legais do casamento. Trata-se de situação de fato, reconhecida pelo direito como uma entidade familiar(3).

Nossa legislação(4) caracteriza a união estável como a relação pública, contínua, e duradoura e nas quais há o dever de lealdade, respeito e assistência mútua entre os companheiros.

Portanto, caracterizada a união estável, às relações patrimoniais oriundas desta relação se aplica, no que for cabível, o regime da comunhão parcial de bens. Entretanto, por meio de contrato escrito entre as partes, é possível eleger outro regime dentre os regimes de bens que elencaremos a seguir.

1.1 Regime de bens entre os cônjuges ou companheiros

Atualmente existem no Brasil quatro tipos de regime de bens: comunhão parcial (ou regime legal); comunhão universal; separação total (convencional ou legal); e participação final nos aquestos, sendo que nos três últimos é necessária a elaboração de um pacto antenupcial5 prevendo a escolha do regime. Vejamos as regras aplicáveis a cada um destes regimes de bens.

1.2 Comunhão parcial de bens(6)

Como o nome sugere, o casal que escolhe este regime de bens para vigorar em seu casamento irá partilhar os bens e direitos adquiridos durante a constância do casamento. Estes bens são denominados de bens comuns, pois pertencem a ambos os cônjuges.

Por outro lado, os bens adquiridos antes do casamento, as doações e heranças recebidas por cada um dos cônjuges em qualquer momento, não são partilhados com o outro cônjuge, assim como os bens que forem sub-rogados em seu lugar. A este conjunto de bens denominamos bens particulares, pois pertencem exclusivamente ao cônjuge que os adquiriu ou recebeu.

Deve-se destacar, entretanto, que os frutos produzidos pelos bens particulares durante a constância do casamento são partilháveis com o cônjuge, como por exemplo os proventos de aluguel provenientes de imóveis recebidos por herança, os dividendos pagos por empresas cujas ações ou quotas foram adquiridas antes do casamento e os rendimentos dos investimentos financeiros.

1.3 Comunhão universal de bens(7)

Neste regime, todo o patrimônio dos cônjuges é partilhado por ambos, não importa em nome de qual dos cônjuges o bem ou direito esteja registrado. A totalidade do patrimônio é comum, ou seja, pertencem ao casal todos os bens, não importando se foram adquiridos antes ou durante o casamento, com esforço comum dos cônjuges ou individualmente.

Destaque-se que as doações e heranças também passam a compor o patrimônio comum, exceto se estas tiverem sido recebidas com cláusula de incomunicabilidade.

1.4 Separação total de bens – convencional ou legal(8)

Neste regime de bens não há patrimônio comum, pois o patrimônio é sempre particular de cada um dos cônjuges, e totalmente separado. Há, então, dois patrimônios particulares autônomos constituídos pelos bens adquiridos antes ou durante o casamento, por cada um dos cônjuges.
Importante destacar que as doações e heranças, recebidas a qualquer momento, pertencem exclusivamente ao cônjuge que as recebeu.

Em algumas situações, entretanto, a legislação determina que deve ser imposto este regime de bens aos nubentes. Trata-se da “Separação Obrigatória ou Legal”. Assim, o artigo 1.641 do Código Civil é taxativo ao prever que é obrigatório o regime da separação total de bens no casamento:



Das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;



Da pessoa maior de 70 anos; ou



De todos os que dependerem, para casar-se, de suprimento judicial.


1.5 Participação Final nos Aquestos(9)

Trata-se de um regime introduzido pelo Código Civil de 2002. Ele ainda é objeto de divergências doutrinárias, pois é relativamente novo, além de não haver na legislação estrangeira regime que corresponda ao modelo adotado no Brasil.

Entende-se que, neste regime, cada cônjuge possui patrimônio particular formado pelos bens adquiridos antes do casamento, inclusive as heranças e doações recebidas.

“Cada cônjuge participará dos ganhos que o outro obtiver durante o casamento, mas não haverá massa comum de bens.”(10)

Profa. Débora Vanessa Caús Brandão

Quanto aos bens adquiridos onerosamente após o casamento, estes também compõem o patrimônio particular do cônjuge que os adquiriu, resguardado ao cônjuge que amealhou patrimônio menor o direito de participar do incremento patrimonial do outro cônjuge no que este superar seu incremento, à razão de 50%. A professora Débora Vanessa Caús Brandão afirma que “…cada cônjuge participará dos ganhos que o outro obtiver durante o casamento, mas não haverá, em momento algum, massa comum de bens (…)(10). Os bens não se comunicam nem para a partilha! Dissolvendo-se a sociedade conjugal, haverá apenas cálculos para a apuração de eventual direito de crédito em favor do cônjuge que amealhou patrimônio menor em face do que conquistou maior patrimônio”(11).

Alteração do Regime de bens do casamento

Atualmente, é permitido que um casal altere o regime de bens durante o casamento. Deve haver uma autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros (artigo 1.639, §2º).

Distinção entre Meação e Herança

Antes de passarmos para a análise das regras de direito das sucessões, convém definirmos o que é a meação, pois é bastante comum a confusão entre os conceitos de meação e herança. Cada um desses termos se refere a parcelas do patrimônio totalmente distintas.

Afirmam os professores Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: “A meação é decorrente da comunhão total dos bens ou comunhão parcial em relação aos aquestos (adquiridos na constância do casamento). A herança representa exclusivamente o patrimônio particular do falecido e a parte dele na comunhão conjugal”. Meação é, portanto, a metade ideal do patrimônio comum dos cônjuges e decorre do regime de bens do casamento. Quando não há patrimônio comum, também não há meação. Assim:


No regime da comunhão universal, a meação corresponde a 50% de todo o patrimônio do casal; e



No regime da comunhão parcial, a meação corresponde a 50% de todo patrimônio adquirido (onerosa ou gratuitamente) após o casamento, exceto doações e heranças.




Por outro lado, herança, no conceito de Clóvis Beviláqua, representa o conjunto de bens integrantes do patrimônio que uma pessoa deixa ao morrer. Portanto, na hipótese de o regime de bens de um casal ser de comunhão universal ou de comunhão parcial de bens, por ocasião do falecimento de um dos cônjuges, realiza-se primeiro a meação e depois a sucessão.

Somente após a segregação da meação do patrimônio que pertence ao cônjuge sobrevivente é que é possível se determinar qual é a herança, objeto da sucessão do falecido.

O leitor que estava se perguntando “se o tema do artigo é sucessão, por que raios estamos tratando de direito de família?” já deve ter compreendido que o planejamento sucessório de qualquer pessoa deve levar em consideração as regras de comunhão de patrimônio aplicáveis não só ao titular do patrimônio a ser transferido para as gerações futuras, como também as regras aplicáveis aos seus herdeiros.

Um fator especialmente importante, quando se trata de planejamento sucessório envolvendo a transmissão de patrimônio aos filhos, é entender se o patrimônio transmitido como doação ou herança estaria ou não protegido da comunhão de bens entre o filho que receberá a doação ou herança e seu cônjuge.

Na próxima edição da CFP® Professional Magazine continuaremos a tratar deste espinhoso tema.

1. O artigo 1.640 do Código Civil determina: “Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas”.

2. Embora nosso Código Civil preveja que a união estável é a entidade familiar constituída entre o homem e a mulher com o intuito de constituição de família, o pleno do Supremo Tribunal Federal – STF já reconheceu que igual direito é reservado aos casais homoafetivos – Ação Direta de Inconstitucionalidade – “ADI” n° 4.277. “EMENTA: (…) 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA.  PROCEDÊNCIA DAS  AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva (…)”.

3. O concubinato, por sua vez, é caracterizado pelo relacionamento entre homem e mulher que, por imposição legal, são impossibilitados de se casar. A hipótese mais comum são os relacionamentos nos quais o homem, a mulher ou ambos já são casados e, portanto, não podem contrair segundas núpcias. Assim, parceiros extraconjugais não serão considerados companheiros (artigo 1.727 do Código Civil). Note-se que esta situação não se confunde com a hipótese da pessoa ser separada de fato ou judicialmente.

4. O Código Civil regula a união estável nos artigos 1.723 a 1.727.

5. Pacto Antenupcial é o documento necessário para estabelecer o regime de bens que irá vigorar durante o casamento. Este é necessário sempre que a escolha do casal for pelo regime da comunhão universal, separação total (exceto a legal) ou participação final nos aquestos (arts. 1.639 e 1.640 do Código Civil).

6. Base Legal: artigos 1.658 a 1.666 do Código Civil.

7. Base Legal: artigos 1.667 a 1.671 do Código Civil.

8. Base Legal: artigos 1.687 e 1.688 do Código Civil.

9. Base Legal: artigos 1.672 a 1.686 do Código Civil.

10. BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Regime de bens no novo Código Civil. São Paulo, Editora Saraiva, 2007, p. 230.

11. IDEM. Op. cit., pp. 236 e 237.

0