A partilha no regime de separação total
Um casal possui um contrato de união estável pelo regime da separação total de bens:
– Ela possui dois filhos do relacionamento anterior
– Os dois possuem um filho em comum
– Ela possui vasto patrimônio adquirido antes da união
Como ficariam partilhados os bens em caso de falecimento dela? Devemos aplicar o fundamento que ao cônjuge cabe metade do que cabe aos filhos desde que haja descendentes que não são filhos do cônjuge sobrevivente?
Gisele Andrade, CFP®:
Poderia ser uma resposta simples, mas não é. Por quê? Quando o novo Código Civil entrou em vigor em 2002 vários temas foram pacificados, mas restaram indefinições que geram controvérsias até hoje.
A questão sucessória aqui levantada tem como primeira fonte de consulta o artigo 1.829, no seu inciso I, com a seguinte redação:
“CC – Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002
Institui o Código Civil.
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”
Entretanto, há uma corrente jurisprudencial que interpreta a lei de forma diferente. Para estes, o contrato antenupcial deve ser respeitado e, se foi combinada a separação total, o cônjuge sobrevivente não seria herdeiro. Esse posicionamento ficou mais fundamentado após a decisão da 3ª Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial 992.749 de fevereiro de 2010. Considerar o cônjuge como herdeiro seria uma quebra de contrato.
Até aqui ainda não falamos sobre companheiros com contrato de união estável, que não se equipara ao casamento.
O Artigo 1.790 é que regula esta questão:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”
Há profundas discussões sobre esse tema e realmente os juízes tendem a analisar cada caso, tentando evitar injustiças, mas de forma geral tenha em mente o seguinte:
– O companheiro não é herdeiro necessário como o cônjuge sobrevivente da parcela dos “bens particulares” (aqueles adquiridos antes da união estável) e nem daqueles recebidos como herança ou doação durante a convivência;
– O artigo é claro em citar que o companheiro tem direito à metade dos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, ou seja, contra pagamento;
– Estas disposições se aplicam quando não há nenhum contrato regendo especificamente o regime de convivência, assumindo-se então a semelhança com a comunhão parcial dos casamentos civis;
– Se o regime escolhido foi o da separação total de bens, em princípio o companheiro não herdará nada.
Para resguardar o cumprimento de sua vontade, você pode doar os seus bens disponíveis em vida e instituir cláusulas com reserva de usufruto, mantendo portando receitas e eventualmente controle sobre o seu patrimônio.
Uma outra forma de bem organizar sua sucessão é utilizando um testamento público, que poderá ser revisitado e atualizado ao longo da vida, permitindo incluir novos herdeiros e definir cláusulas sobre os bens a serem transferidos (como incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade).
Cabe ressaltar que, de qualquer forma, o testamento não deve interferir na legítima, ou seja, na parcela que já tem herdeiros claramente definidos pela lei. De modo simplificado, 50% do seu patrimônio deve ir para os herdeiros necessários e o restante você pode dispor como quiser.
Em ambos os casos acima, você pode contemplar o companheiro, se for o caso.
Um detalhe importante é que a existência do testamento obriga a uma sucessão judicial – normalmente mais demorada e mais cara do que feita em cartório.
Considerando a complexidade deste tema, recomendo fortemente que você busque o auxílio de um bom advogado especializado em família e sucessões, considerando ainda a hipótese de combinar esse profissional com um terapeuta familiar, que poderá auxiliá-la nas suas decisões, atenuando angústias e ansiedades típicas das decisões importantes da nossa vida.
Gisele Andrade é planejadora financeira pessoal e possui a certificação CFP (Certified Financial Planner) concedida pela Planejar – Associação Brasileira de Planejadores Financeiros. E-mail [email protected]
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Texto publicado no jornal Valor Econômico em 11 de agosto de 2014.