Xerifes e orientadores no novo mundo
As instituições de regulação e autorregulação já direcionavam esforços para a digitalização de processos e, após a pandemia, preparam-se para uma revolução nos métodos de trabalho dos profissionais de mercado e nas demandas de investidores
Um mercado digitalizado, com amplo acesso do investidor às ferramentas para transações online, além do apoio dos órgãos reguladores para as inovações em tecnologia da informação. Todo este processo em curso há alguns anos criou uma espécie de blindagem para a indústria financeira no Brasil encarar os efeitos da pandemia de Covid-19. O segmento não precisou de um grande esforço para a adaptação à nova realidade. Entre as poucas medidas adotadas para o período de quarentena, a principal foi o esvaziamento dos escritórios e o deslocamento de funcionários para o trabalho remoto em casa.
Foi assim com o principal órgão regulador do mercado de capitais no país, a Comissão de Valores Mobiliários, que teve o prédio no centro do Rio de Janeiro 100% fechado em março de 2020. “A CVM vai voltar diferente de como entrou na pandemia, com muito mais teletrabalho, o que nos deu muito mais conforto para enfrentar o período com o uso de ferramentas de comunicação online”, constata Daniel Bernardo, Superintendente de Relações com Investidores Institucionais.
Se a adaptação ocorreu sem traumas, o impacto financeiro da crise já é considerado algo pontual. Após o auge das perdas nos valores de ativos no primeiro trimestre do ano com as incertezas sobre a economia global, as projeções e os negócios puderam ser novamente restabelecidos e o pânico deu lugar à sensatez para os mercados buscarem o ajuste e a recuperação.
Bernardo destaca que houve um mínimo de ocorrências de intervenção do regulador. “Foi um resgate muito concentrado em alguns segmentos, como fundos de renda fixa e, dentro deste segmento, nos fundos de crédito privado, onde o monitoramento foi muito intenso”.
A CVM acompanhou atentamente a alavancagem dos participantes do mercado e, da mesma forma, as salvaguardas da bolsa brasileira. “Apesar da gente ter alguns fundos bastante alavancados, não tivemos problemas de natureza sistêmica e a B3 lidou muito bem com todas as situações, acionando somente salvaguardas de primeiro nível, que envolvem apenas o cliente e ainda não acionam o intermediário e o caixa da própria bolsa”, explica Bernardo.
Outro ponto positivo foi a intensificação das assembleias online já regulamentadas antes da pandemia e que permitem a participação de um número maior de acionistas ou cotistas de fundos nas decisões a partir de qualquer lugar.
“Grande parte das atividades e de regras da regulação e da autorregulação vai passar a ter, no mínimo, a opção digital”
A realização de assembleias digitais era uma antiga causa da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais. Em um esforço conjunto com CVM e outros segmentos do mercado, a Anbima conseguiu incluir a participação online na legislação. “Grande parte das atividades e de regras da regulação e da autorregulação vai passar a ter, no mínimo, a opção digital”, afirma Zeca Doherty, superintendente-geral da instituição. Ele também prevê outras mudanças a partir deste período de pandemia como a auditoria não presencial e a introdução de robôs para a leitura de documentos. Outro desafio é aos planejadores financeiros que precisam estar bem preparados para a consultoria online aos clientes. “Neste momento de crise, o investidor precisa deste contato visual e virtual com o planejador que deve estar preparado para isso porque não é todo mundo que sabe e consegue se expressar virtualmente”, explica Doherty.
Conquistada esta adaptação, o profissional ainda vai se deparar com novas demandas de clientes que já vivem em uma realidade diferente. É claro que a pandemia do novo coronavírus deixará marcas profundas. Governos, instituições e pessoas terão um outro olhar não só para a preservação da saúde, mas também para o bem-estar das finanças. Afinal, o mundo nunca estará absolutamente livre de uma semelhante ameaça no futuro. “À medida em que a nossa pirâmide populacional vai se aproximando da forma de um retângulo, teremos uma sucessão de patrimônio dos atuais patriarcas para uma nova geração muito diferente”, explica Jan Karsten, presidente da Planejar, a Associação Brasileira de Planejadores Financeiros.
À frente de uma entidade voltada para a educação financeira, formação de profissionais de finanças e, principalmente, ao controle da qualidade desta prestação de serviço, Karsten vê ainda uma tendência que precisa ser observada atentamente pelo planejador. Os jovens que vão assumir patrimônios e gestões já têm e devem intensificar uma mentalidade diferente em relação ao mundo. “É uma geração muito consciente que quer saber para onde vai o dinheiro e se a empresa na qual investe tem consciência sobre sustentabilidade, diversidade, governança e o que ela tem feito para a sociedade neste momento”. Segundo Karsten, estas preocupações virão logo após as companhias se reestruturarem dos efeitos da pandemia. O contraponto é a desigualdade que o processo de digitalização cria entre os mais adaptados às novas tecnologias e os que não conseguiram acompanhar e assimilar as mudanças de maneira urgente. “No final, o processo divide pessoas e empresas entre os que estavam prontos para crescer e preservar capital e os que não tiveram mais como competir”, afirma.