Inclusão de ativos financeiros como bens de família
O instituto do bem de família é um daqueles conceitos jurídicos de que todo mundo já ouviu falar, mas que, na prática, quase ninguém viu. Todos “sabem” que bem de família é o imóvel residencial que a lei protege contra “qualquer” tipo de dívida, evitando que o bem seja usado para saldar dívidas do proprietário e a família seja despejada. Embora esse conceito não esteja completamente errado, ele é mais do que isso. O bem de família é uma ferramenta poderosa de proteção do patrimônio e, por incrível que pareça, pode abranger, também, ativos financeiros.
O conceito de bem de família foi introduzido na legislação brasileira pelo Código Civil de 1916 e permitia “aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio”(1). Naquela época, a sua instituição exigia formalização por escritura pública registrada no Registro de Imóveis e publicada na imprensa(2), valendo somente para dívidas posteriores(3).
O instituto foi incorporado à Constituição de 1988(4) até que a Lei nº 8.009/90 criou o chamado “bem de família legal”, que protegia a residência familiar independentemente de qualquer ato do proprietário. Essa lei continua em vigor e dispõe que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”(5). As exceções são, em geral, dívidas relativas ao imóvel e pensão alimentícia. A lei ainda prevê que, caso o proprietário detenha vários imóveis residenciais, a proteção da impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor(6).
É esse o bem de família que continua vivo no imaginário popular, cuja fama não faz jus à proteção que ele oferece.
O instituto evoluiu significativamente em 2002, quando o atual Código Civil(7) resgatou e melhorou o conceito do Código de 1916, criando uma segunda modalidade, o “bem de família voluntário”, que depende de escritura pública e registro na matrícula do imóvel. Assim, a partir de 2002, duas modalidades de bem de família passaram a coexistir: a legal e a voluntária.
O objetivo desta última é o mesmo da primeira: dar à residência familiar proteção contra penhora e dívidas civis, fiscais, previdenciárias, trabalhistas ou de outra natureza contra o proprietário, ressalvadas as exceções legais.
O bem de família é uma ferramenta poderosa de proteção do patrimônio e pode abranger, também, ativos financeiros.
Residência familiar é aquela que abriga seu proprietário e as pessoas que compõem a sua entidade familiar, como cônjuge, companheiro, filhos e parentes. Ela também inclui a residência de pessoas solteiras, separadas e viúvas(8). Entidade familiar, por sua vez, é um conceito interpretado no sentido mais amplo possível, incluindo aquela formada pelo casamento e união estável (hétero ou homoafetiva(9), assim como a família monoparental(10) (um dos pais e filhos) e anaparental (órfãos, primos, amigos idosos que moram juntos).
Um “detalhe” pouco explorado é a possibilidade de o bem de família voluntário também incluir ativos financeiros. A lei prevê que essa modalidade de bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, podendo abranger valores mobiliários cuja renda seja utilizada na conservação do imóvel e no sustento da família(11). Os ativos financeiros não poderão superar o valor venal do imóvel bem de família na data da instituição(12) e deverão constar de forma individualizada na escritura(13).
Isso traz uma vantagem adicional ao bem de família voluntário, pois o proprietário poderá destacar parcela do seu patrimônio financeiro e atribuir-lhe os mesmos efeitos de proteção do imóvel a fim de garantir a sua conservação e o sustento familiar.
O montante dos recursos deverá respeitar dois limites: 1) não poderá ultrapassar o valor venal do imóvel e, 2) em conjunto com o imóvel, não poderá ultrapassar um terço do patrimônio familiar. Assim, mediante escritura pública é possível proteger até um terço do patrimônio contra penhoras e execuções, abrangendo não apenas o imóvel de residência familiar, como também ativos financeiros do proprietário.
Tivemos a oportunidade de lavrar uma das primeiras escrituras, se não a primeira, de instituição de bem de família voluntário com inclusão de ativos financeiros. A tarefa não foi fácil, pois vários Cartórios de Notas da capital paulista se recusavam a lavrá-la. A sua legalidade, no entanto, foi confirmada em consulta à Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo e, desde então, essa ferramenta tem sido adotada com sucesso.
Em conclusão, o instituto do bem de família vai muito além da sabedoria popular, permitindo proteção mais efetiva do patrimônio familiar. Na modalidade voluntária, permite a escolha do imóvel a ser protegido (não necessariamente o de menor valor), além de autorizar a inclusão de ativos financeiros para garantir a manutenção do imóvel e o sustento da família. A sua utilização mais abrangente e ativa é uma ferramenta interessante e poderosa na proteção eficaz do patrimônio pessoal, não raro adquirido com muito trabalho e esforço.
1. Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/16), Art. 70.
2. Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/16), Art. 73.
3. Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/16), Art. 71, parágrafo único.
4. Art. 6º, Direito à moradia.
5. Lei nº 8.009/1990, Art. 1º.
6. Lei nº 8.009/1990, Art. 5º, parágrafo único.
7. Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02), Art. 1.711 e seguintes.
8. Súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
9. Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277.
10. Constituição Federal, Art. 226.
11. Código Civil de 2002, Art. 1.712.
12. Código Civil de 2002, Art. 1.713.
13. Código Civil de 2002, Art. 1.713, § 1º.